PUBLICAÇÕES

N.º 19 (2025): CEM
CEM N.º 19
CULTURA, ESPAÇO & MEMÓRIA
Direção: Inês Amorim
Edição do dossiê temático:
Manuel Joaquim Moreira da Rocha (U. Porto/FLUP-DCTP/CITCEM)
Nuno Resende (U. Porto/FLUP-DCTP/CITCEM)
A arte da talha
Num tempo em que a produção científica em ciências sociais e humanas se pauta, cada vez mais, por agendas externas e por tendências que privilegiam determinadas problemáticas contemporâneas, torna-se urgente refletir sobre domínios que, não se enquadrando nesses critérios de atualidade, vão sendo silenciados ou negligenciados. A situação é tanto mais grave quando se trata de áreas como o património cultural, campo em que a Universidade do Porto construiu, ao longo de décadas, uma reputada tradição de investigação científica, quer a nível nacional quer internacional.Independentemente das modas ou das métricas de avaliação, a relevância dos temas a investigar não pode ser quantificada de forma simplista. Nesse sentido, as artes da talha e da retabulística impõem-se como objeto de estudo incontornável, quer enquanto técnica artística quer como expressão patrimonial disseminada em contextos culturais muito diversos. A talha em madeira e os retábulos constituem teste-munhos materiais de grande riqueza artística, presentes em incontáveis espaços reli-giosos — sobretudo no mundo católico — mas também em contextos civis, em geografias que vão do sul da Europa, às Américas, da Índia ao Sri Lanka ou à Indonésia.Longe de se tratar de um fenómeno local ou meramente barroco, a talha atravessa épocas e geografias, agregando múltiplos saberes e ofícios — do entalhe à carpintaria, do douramento à pintura — num verdadeiro «corpo coletivo» de produção artística. Os retábulos, por sua vez, assumem-se como objetos artísticos integrados, onde confluem a arquitetura, a escultura, a pintura, a iconografia, a liturgia e até elementos senso -riais como a música e a acústica, projetos complexos concebidos e desenhados por artistas excecionais.A Faculdade de Letras da Universidade do Porto desempenhou um papel pioneiro no estudo destas manifestações, deixando uma marca historiográfica que importa revi-sitar. Retomar esse legado significa não só reconhecer os contributos do passado, mas também abrir caminhos a novas abordagens metodológicas e interdisciplinares. Estudar a retabulística, hoje, implica cruzar a análise da estrutura física e arquitetónica com o desenho artístico, com a linguagem plástica dos relevos, com os programas icono gráficos e com os contextos litúrgicos e performativos que lhe dão sentido.
Os trabalhos submetidos a este número são reveladores, por um lado, da impor-tância da continuidade dos estudos da talha e da retabulística e, por outro, da expansão dos mesmos a áreas afins, próximas ou mais distantes artística, técnica e tematicamente falando — revelando assim a riqueza de abordagens deste assunto:
• A investigação sobre a Capela de Nossa Senhora das Verdades documenta a sua reabilitação e destaca o retábulo no contexto da talha portuense.
• O estudo sobre o órgão do Convento de Santo Elói, no Porto, analisa as colabo-rações entre mestres de talha e de pintura, propondo a autoria da caixa do órgão com base em fontes contratuais.
• Uma reflexão sobre a efemeridade em arte assinala a relevância da prática dos armadores e da armação litúrgica nos séculos XIX e XX, cruzando fontes escritas e visuais, com destaque para o contexto portuense.
• A análise das ofertas devocionais oriundas da Terra Santa permite reconhecer a presença de objetos em madrepérola e em madeira de oliveira nos retábulos portugueses, revelando redes de circulação e piedade global.
• Uma investigação sobre o painel da Circuncisão, pertencente à diocese do Porto,relaciona a obra com a tipologia retabular e analisa o seu percurso institucional à luz da conservação e restauro.
• Um estudo centrado na Igreja de Tibães explora o papel do coro alto beneditino,valorizando os painéis esculpidos e a sua iconografia no contexto da renovação litúrgica pós-Trento.
• O trabalho sobre a produção de sanefas rocaille em Aveiro traça a atuação do mestre entalhador Manuel Ferreira e Sousa «filho», identificando núcleos e séries em diferentes instituições religiosas.
• A encomenda do altar da Sagrada Família nos Jerónimos é analisada a partir de um contrato de 1734, contextualizando a atuação do entalhador e o ambiente artístico lisboeta pré-terramoto.
• Por fim, destaca-se a originalidade do barroco português e a atuação de ManuelFerreira de Figueiredo em Penafiel, num exemplo de produção regional de grande sofisticação entre 1688 e 1702.
Estes trabalhos e respetivos propósitos investigativos articulam-se com as linhas orientadoras do plano estratégico do CITCEM — Centro de Investigação Transdis-ciplinar Cultura, Espaço e Memória —, que reconhece a importância do património como construção cultural dinamizada em diálogo com as comunidades. Ao valorizar o estudo da talha e dos retábulos enquanto património vivido, entendido não apenas como objeto histórico, mas como elemento identitário e agregador de memórias cole-tivas, este número da revista CEM contribui para uma investigação que se quer mais participada, plural e enraizada no território, tal como defendido pelo CITCEM.
Neste quadro, justifica-se plenamente a pertinência deste número da revista, que procura estimular contributos dedicados às artes da talha e do retábulo. Ao revisitar a herança académica da Universidade do Porto e propor novas problemáticas, este número visa reafirmar a importância de um campo de estudo essencial para a compreensão do património artístico e cultural.Resta-nos agradecer à Professora Doutora Inês Amorim a aceitação da nossa proposta temática e a toda a equipa da CEM pelo trabalho desenvolvido.Manuel Joaquim Moreira da RochaNuno Resende